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Terça-feira, 14 de Fevereiro de 2006
Ritual do namoro/alimentação
A propósito deste dia tão especial para muitos, triste para outros (os que não têm com quem o partilhar) e indiferente para os restantes, passo a transcrever um pequeno texto para todos aqueles que se queiram debruçar sobre ele. Questionem-se, comentem
sobretudo divirtam-se como eu habitualmente faço quando consumo literatura.
MARMELADA.
O gosto pela marmelada é ainda o mais fácil de concretizar. A marmelada é doce, sabe muito bem, mas de modo nenhum enche ou satisfaz. Quando se abusa da marmelada, é mais que sabido que, em vez de entreter a gulodice, acaba por enjoar. Ficar-se pela marmelada produz a sensação esquisita de quem tenta matar a fome com chocolate: deixa um muito açucarado vazio a moer no fundo do estômago. A marmelada, como o chocolate, é um prazer que tende a diminuir com o avançar da idade. É uma sobremesa a fingir de conduto, um petisco que abre o apetite sem o saber fechar, um antipasto que se trinca à porta trancada da casa de pasto.
Este parágrafo que penosamente se acabou de ler é, para um português, convenhamos, bastante ordinário. As ressonâncias que estalam à volta da palavra «marmelada» são, aliás, típicas da nossa cultura. Por isso, em vez de nos pormos a distinguir a marmelada fina da grossa, ou a fazer o levantamento das formas modernas da marmelada nomeadamente, a marmuça, o marmeladarme e o enigmático marmex detenhamo-nos numa consideração mais ampla e importante. A saber: porque é que os portugueses associam tanto o sexo à alimentação?
As áreas da fruta e do peixe são particularmente ricas e semanticamente nutritivas. Os tomates, por exemplo, nunca foram pacíficos. Os próprios marmelos têm, como se sabe, que se lhes diga. Ao dizer de dada entidade que «é um pêssego», a referência não é necessariamente ao fruto do pessegueiro. Só na nossa língua, por exemplo, faz sentido dizer que Yull Brynner é um pêssego careca. E não se julgue que estes investimentos significativos se limitam à fruta (a própria fruta e o seu sinónimo chicha, como colectivos, são problemáticas). A bem ver, nem a hortaliça se encontra isenta, alastrando-se o «innuendo» por todo o espectro vegetal, desde o nabo até ao grelo.
Diz-se de pessoas atraentes que são «boas como o milho». Basta traduzir para francês ou inglês para perceber que o «elogio» tem uma circunscrição estritamente local. Nas outras culturas, «o milho» não é, simplesmente, tão bom como isso. Caso se dissesse «youre as good as corn» a uma íntima inglesa, é provável que se levasse uma merecidíssima chapada.
Outra coisa irritante que se faz muito em Portugal é chamar «figos» às pessoas e esperar que as pessoas se sintam envaidecidas com isso. Os portugueses dizem de determinados compatriotas «chamava-lhe um figo», como se «um figo», que é um fruto muito pouco atraente, fosse uma coisa fabulosa para estar assim a chamar às pessoas.
Seja milho ou seja figo, a lição é clara: o povo português tem um tal amor À alimentação, sacralizando tanto aquilo que come, que sobrevaloriza certos alimentos, ao ponto de os confundir com objectos de paixão bastante mais elevados, como sejam, a titulo de exemplo, as pessoas.
O que acontece com a fruta repare-se na proliferação de anedotas que provocou a recente importação (embargada) de bananas repete-se, com maior gravidade, naquele outro género alimentício que é o peixe.
É de tal escala o fenómeno, que são poucas as espécies que escapam à rede de profanas metaforizações. São os ditados que associam (porquê, Santo Deus?) a sardinha à mulher, sendo característico da nossa cultura popular que tanto faça dizer «da maior» ou «da mais pequena que houver». (
) Olha-se para a tabelade preços de uma peixaria e cada peixe traz, por assim dizer, água no bico linguado, berbigão, lula, tainha
E, falando em bicos, repara-se que nem os passarinhos escaparam. Que outro povo tem por galanteio chamar «pombo implume e incapaz de voar» a um indivíduo que seja considerado sexualmente desejável? (A um destes pombos inviáveis se chama, em português, borracho.)
Só em português é que quase todos os nomes de frutos ou de peixe são, por si só e por contexto, potenciais obscenidades. Mesmo aquelas palavras que ainda não foram investidas de conotações sexuais mostram já uma promessa da mais ordinária lascividade. Ou não se imaginam facilmente como palavrões um chicharro ou um cachucho, uns morangos ou uns melões? (
)
Seria «trigo limpo» continuar esta exposição pela linha das carnes (com realce para a carne de porco e seus derivados), detendo-nos na perplexidade sociológica que provocam expressões como «abafar a costeleta». (
) As conotações sexuais que há muito se deram a estas singelas palavras fariam com que um Marciano, ao ouvir falar dois portugueses acerca de uma recente conquista, julgasse a nação portuguesa como um povo não só orgulhosamente só como orgulhosamente canibal. (
) A verdade é que este curioso «interface» entre o sexo e a alimentação talvez se deva à falta generalizada de ambas as coisas, juntando-as assim num espaço semântico em que se partilha a ganância comum de usufruí-las um pouco mais. Ou, por outras palavras: esta marmelada semântica, esta confusão toda que fazemos, deve-se fundamentalmente, a um excesso de marmelada, e logo à escassez do que a marmelada, baratinha e coitadinha, procura, à sua maneira, substituir.
Miguel Esteves Cardoso, A CAUSA DAS COISAS
De Anónimo a 14 de Fevereiro de 2006 às 22:13
Olá Regina! Viva! É um prazer ter a companhia da Regina neste espaço. Muito obrigado. E os meus agradecimentos pela sua colaboração, pois este também é um espaço de reflexão. E quanto a Miguel Esteves Cardoso, está tudo dito. Beijinho do Francisco e continue.Francisco
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(mailto:frodrigues@portugalmail.pt)
De
elilou a 26 de Março de 2006 às 19:03
Agradecimentos de Paris para o colega mais querido do Porto que eu conheço e que me faz descobrir estas aventuras virtuais...Beijocas e saudaçoes a todos...
De
Franc a 26 de Março de 2006 às 19:18
Olá Elisabete! É um prazer ter a sua companhia aqui no blog. No entanto, o seu estatuto aqui já é de co-autora, Por isso, espero vivamente pela publicação dos seus artigos com e sem imagem, directamente enviados de Paris ou, pelo menos, de terras gaulesas. Beijinho e até breve. Francisco.
De
elilou a 27 de Março de 2006 às 21:46
OI isto é so uma experiencia de Paris
para o meu querido colega
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